Vivemos tempos de intensíssima disputa ideológica. Paz à alma dos tecnocratas! O grande mérito de uma “tal” moção de censura anunciada, é o de ter recuperado para o campo da Esquerda, essa disputa. Já não é apenas uma questão de desconstruir o edifício retórico neo-liberal, mas também e, fundamentalmente, o de reflectir acerca do papel que essa Esquerda, toda ela, social-democrata, radical, revolucionária, pode ter na “janela de oportunidade” que esta crise pode constituir.
Nos últimos dias a coisa tem andado vermelha! De todo espectro político, têm vindo disparos na direcção do Bloco de Esquerda (e porque não dizê-lo, de Francisco Louçã), quase todos eles preparados à mais de 12 anos. Há, inclusive, muita gente que de tanto tempo com o dedo indicador no gatilho, ainda não o consegue esticar.
Mas qual o motivo de tanta azáfama? Elísio Estanque, avança com a seguinte ideia:“Com o PS e alguma pressão da esquerda (e da rua), ainda será possivel defender o Estado social em algumas áreas fundamentais. Com o PSD no governo (provavelmente em aliança com o PP) e Cavaco de mãos livres é que irá tudo por água abaixo num instante. Não dá para entender o que é que o Bloco vai ganhar com esta moção.” Seria desonesto negar o papel desempenhado pelos partidos políticos sociais democratas europeus, de que o PS foi, por alguns momentos históricos, representante, na construção do Estado Social e por essa via, no efeito que este modelo teve na vida das populações. Mas é sempre bom recordar que esse Estado-Providência não se edificou pela boa vontade de nenhuma dessas forças, mas sim pela luta secular dos trabalhadores europeus e também diga-se, por uma questão de justiça histórica, pelo receio do “perigo vermelho”.
Durante décadas , portanto, a ideia, na expressão de Mário Soares, de “socialismo em liberdade” constitui o discurso legitimador de todos os partidos sociais democratas europeus e, em Portugal do PS. Exercício retórico esse, muitas vezes concretizado na prática, o que lhes granjeou uma hegemonia eleitoral decisiva para definir os destinos dos seus respectivos países. Os serviços públicos de saúde, educação, a segurança social pública, a protecção no emprego, entre outros, aos olhos da população significavam, mais do que política ou socialismo, esperança.
Mas qual o motivo do Bloco de Esquerda em apresentar uma moção de censura a um governo do PS, desse PS do (suposto) Estado Social, daquela família política social-democrata europeia?
Ironia do destino, foram (e são ainda) esses mesmo partidos sociais democratas europeus que fizeram questão de não só ajudar, como promover, a destruição daquilo que à décadas auxiliaram a construir, o Estado Social. Sim, porque depois de Thatcher, tivemos Blair. Depois de Reagan, tivemos Clinton. E em Portugal, depois de Cavaco (ou Durão) tivemos Guterres (e Sócrates). Traduzido por miúdos: não foram apenas os neo-liberais que ajudaram a dilacerar o Estado Social. Os partidos de tradição social democrata (note-se como não utilizo a expressão “os sociais democratas”), obtiveram das populações um mandato de recuperação do tal “socialismo em liberdade” e que o fizeram? Meteram-no na gaveta e ao que consta, perderam a chave. Poupo-me nos exemplos. Tudo mudou, para tudo ficasse na mesma.
E agora, perguntam esses mesmo partidos, “que fazer”? A palavra justiça e igualdade foi substituídas pela palavra, estabilidade. Tudo atenta à estabilidade, à “segurança dos mercados”, qual paz dos cemitérios. “Ah já sei. Vamos dizer que, apesar de termos andado anos e anos a fazer merda, a verdade é que nós é que somos os bons. Ou nós ou o pântano, da esquerda radical e da direita neo-liberal”. Não é minha intenção fazer juízos definitivos sobre circuntâncias históricas, mas se a queda do Muro de Berlim constituiu a “sentença de morte” na legitimidade do discurso do “comunismo” (tal como ele era entendido e praticado na URSS, note-se), a crise que vivemos terá um efeito semelhante na legitimidade do discurso social-democrata europeu (tal como o entendem os seus defensores). E por culpa própria. E que ninguém se engane. A manter-se esta chantagem sobre o eleitorado, aquela chantagem que tão bem Elísio Estanque denunciou, a dos mercados (substituída agora, curiosamente por ele, pela chantagem do rotativismo do centrão), não será o sistema Capitalista a pagar a factura da crise que ele próprio, pelas suas contradições internas, desencadeou. "Parece que a esquerda radical não aprendeu nada com a história...". Já somos dois.
Este é o tempo de decisão da esquerda, em particular, dos genuínos sociais democratas, que ainda militam e votam PS. Nem o mais radical dos reformistas, pode ainda manter viva a ilusão de reforma do PS. Este é o tempo de reflexão de todos aqueles sociais democratas. Serão eles bastantes, terão eles a capacidade de influência necessária para imprimir a mudança de rumo que pretendem no seu partido? Em algum momento isso foi possível? Não me parece. E note-se que o Bloco de Esquerda não é, nem pretende ser o porto de abrigo dos desavindos do PS. Não se trata de reforçar o partido, mas de fortalecer o movimento social de resistência.
Há ainda muita gente à Esquerda, que tendo embora percebido que a situação que vivemos é verdadeiramente de excepção, ainda só o evidenciou no discurso e não na prática. Se há razão que explica a sucessão de derrotas da Esquerda portuguesa é a crença idiota na ideia que a maioria social de esquerda é proporcional à sua representação política (no parlamento e fora dele). Não é. E as derrotas são apenas a consequência dessa relação de forças desfavorável. Percebê-la, já há-de se significar um grande avanço.
E qual a estratégia a seguir quando sabemos que o nosso adversário é mais forte? Tentar crescer, igualar ou suplantar a sua força, mas saber resistir enquanto esse momento não chega. É isso que se exige da Esquerda, de radicais, sociais democratas, revolucionários, independentes, que saibam resistir. Para os sociais democratas portugueses a questão é só uma: valerá a pena arrastar consigo neste longo trajecto o cadáver em estado de putrefacção, que é hoje o PS para a Esquerda? Tenho ouvido muitos argumentos que apontam no sentido de uma resposta afirmativa. Todos eles, do tipo de defesa “da sua camisola”. É o tempo de ser perceber se as ligações afectivas a um partido serão mais fortes do que a defesa dos ideais em que se acredita.
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