14 de agosto de 2010

As Coisas Às Avessas


"É normal desenvolverem-se propósitos ou concretizarem-se intenções que não se conhecem a fundo. O facto de alguém estar a fazer algo, não significa que saiba o que está a fazer. Esta peculiaridade de realizar desígnios sem consciência costuma ser atribuída às máquinas. O carro chega ao seu destino sem o saber, porque é conduzido por outrem. Mas só na sua aparência mais superficial este comportamento igualmente mecânico é, nas pessoas, algo de tão extraordinário assim.

Falar é uma das acções mais frequentes. E a maioria das afirmações que se faz ao falar é falsa. Por exemplo, muitos trabalhadores e empregados dizem: "o dinheiro gera riqueza", ainda que não seja o dinheiro que gera a riqueza, mas sim eles próprios. Ao dizerem-no, estão a repetir o que ouviram. "Ponha o seu dinheiro a render connosco", proclamam os bancos insistentemente. Onde foram aqueles que verdadeiramente trabalham buscar a ideia que põe o mundo às avessas, apresentando as coisas ao contrário do que são? Os sisudos professores de economia vêm afirmando-o há décadas. Dizem que o solo, o capital e o trabalho são os "factores de produção".

Mas o solo não faz nada, o capital não faz nada, o "trabalho" não faz nada. Quem faz é quem trabalha, são os empregados e, alguns casos, os empresários também. Por que razão subsistem, então, tamanhas tergiversações da realidade?

A razão encontra-se no efeito que elas produzem. O efeito de apresentar assim a questão de produção consiste em que os trabalhadores atribuem, na lógica da produção, mais importância ao capital do que a si mesmos, ainda que sejam eles quem produz o capital. O efeito é esta condição de modéstia e humildade induzidas, atributos dos escravos, da mentalidade submissa.

[...]

Os habitantes das grandes cidades mostram aos seus visitantes da província e dos estrangeiro os maravilhosos arranha-céus e os mais recendes edifícios "inteligentes" dos bancos e consórcios empresariais. Apontam para eles com orgulho e falam deles como se fossem seus. Mas, a realidade é que são propriedade privada de uns quantos negociantes multimilionários que com os seus edifícios prodigiosos expulsam esses mesmos habitantes para as cidades dormitório das periferias. Milhares e milhares deles têm de abandonar as suas casas no centro das cidades porque umas dezenas de especuladores ganham mais com edifícios comerciais do que residenciais. Os trabalhadores assalariados e empregados tem que ir para os arrabaldes (agora chama-se subúrbios) porque o Estado protege os especuladores de solos. Hoje em dia, os trabalhadores deixam mais de um décimo da sua vida no transporte para o local de trabalho.

Os expulsos estão orgulhosos da propriedade que os expulsa. Não aprenderam a estabelecer as relações entre as diferentes informações, a contextualizá-las. Consideram, aliás, imutável e inelutável a situação".

In, A Formação de Mentalidade Submissa de Vicente Romano

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