Ontem, entre mais de 300 mil pessoas que se manifestaram por todo o país, tod@s teremos visto amig@s ou familiares ou vizinh@s ou colegas, caras conhecidas de outros contextos mais e menos próximos de activismos. Quantas vezes pensámos ontem “est@ também está aqui?!”? Quantas vezes cumprimentámos alguém que não víamos há muito, muito tempo?, ou com quem sempre nos pegámos nas discussões de café por pensar de forma completamente oposta à nossa?, ou que fazia sempre cara de enfado a qualquer “politiquice”?, ou que sempre disse que nunca ia a nada destas coisas porque não vale a pena, não muda nada?...
E hoje no facebook vi outra tanta gente que não encontrei no protesto publicar fotografias suas lá pelo meio. Eu e muita gente vimos muita, mesmo muita gente a lutar.
O que dizer agora aos improváveis, aos “est@-também-está-aqui?!” e aos que “nunca-vão-a-estas-coisas-porque-não-vale-a-pena”? Esta é a pergunta que importa colocar ao debate, para dar direcção a um fenómeno único, não só pela sua dimensão quantitativa e sua descentralização (50 a 80 mil pessoas no Porto e 6 mil pessoas em Faro são números impressionantes), mas sobretudo pela revolução que significou não só para as formas institucionais reinvindicativas vigentes, como para o processo de formação de uma identidade colectiva de classe trabalhadora em contexto de precarização laboral.
Sem sindicatos nem partidos, mais de 300 mil pessoas juntaram-se em torno de bandeiras várias: mulheres, imigrantes, estudantes endividados junto dos bancos, artistas, estagiári@s não remunerad@s, recibos verdes, etc. E ontem um passo gigantesco foi dado no sentido da superação da atomização e isolamento do indivíduo na sociedade com que a precarização do trabalho e os motes de flexibilidade e empreendedorismo sabotam identidades colectivas e futuros desejados em comum. Ontem começámos a ver que Karl Polanyi tinha mesmo razão, que esse é um processo que não está completo sem o duplo movimento pelo qual a sociedade reage para se proteger dos efeitos nocivos dessa desagregação social decorrente da mercadorização do trabalho.
“O laissez-faire foi planeado; o planeamento não”[1], escreveu Polanyi sobre este duplo movimento. Quer dizer, o trabalho mercadoria é uma construção institucional programada e orientada pela agenda liberal do mercado laboral perfeito (isto é, em que é apenas a lei da procura e da oferta a determinar o preço e o volume do emprego, sem “contaminações institucionais” como contratações colectivas ou protecção social), ao passo que a reacção social ao desmantelamento de estruturas que, sendo não-mercantis, são o sustentáculo do funcionamento das leis de mercado numa sociedade é, primeiramente, instintiva e amorfa do ponto de vista conceptual ou ideológico.
A precariedade é produto de uma estratégia bem pensada; a Geração à Rasca precisa agora de encontrar a sua. O que tem uma esquerda socialista a dizer-lhe?
[1] Polanyi, K., A Grande Transformação
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