O Público dá hoje conta de que o Santander Totta tinha montado, já há coisa de uma década, o seguinte esquema de planeamento fiscal:
“(…) 350 milhões de dólares, Ptif (150 milhões de dólares) e Taf (200 milhões), foram colocados no início da década passada (…) numa conta da sucursal do Luxemburgo, onde a taxa de IRC é reduzida (…). Nos anos seguintes, a verba seria triangulada entre praças financeiras, respeitando as datas de vencimento dos pagamentos acordados com os titulares das duas sociedades. A casa-mãe emprestava os 350 milhões de dólares à sucursal luxemburguesa, a uma determinada taxa de juro, e, esta, por sua vez, aplicava-os junto da sede (tipo depósito a prazo), através da sala de mercados de Lisboa, à mesma taxa, acrescida de um spread (que dava à sucursal a margem de lucro e à sede um custo adicional). Depois, a sucursal do grão-ducado transferiria os juros vencidos para a de Londres, que por sua vez os encaminhava para a conta as Caimão (onde não há tributação de lucros)” (Público, 17.02.2011)
No final, o que acontecia era que os juros pagos à sucursal do Luxemburgo constituíam um prejuízo para o banco em Portugal, reduzindo a matéria colectável, ao mesmo tempo que proporcionavam proveitos livres de impostos na sua aplicação nas Ilhas Caimão.
No meio de tudo isto, a ideia era ninguém se entender sobre a quem caberia prestar as declarações tributárias a quem: se eram os emissores dos dois instrumentos financeiros, o JPMorgan e o Deutsche Bank que deveriam enviar as declarações tributárias à Reserva Federal norte-americana, ou se era a sucursal no Luxemburgo, por aí estarem domiciliados os fundos. E isto acontecia porque, segundo as explicações do Santander Totta, “o Ptif e Taf não eram propriedade exclusiva do banco e pertenciam também a investidores que podiam ser norte-americanos ou outros quaisquer”.
Entre outras coisas, engenharias destas são, simultaneamente, os produtos perigosos e poderosos veículos da retórica neoliberal.
Uma boa parte do discurso crítico da desregulamentação do sistema financeiro assenta em fundamentos teóricos neoclássicos. Segundo estes, o óptimo social na afectação de recursos, que seria alcançado na interacção entre indivíduos maximizadores do proveito individual, requereria um contexto de mercado de concorrência e informação perfeitas. Isto é um erro porque desmontar a desregulamentação do sistema financeiro com recurso ao corpo teórico neoclássico não abala em nada o projecto neoliberal, que parte de um quadro paradigmático inteiramente distinto.
É que, ao contrário do quadro epistémico neoclássico, que postula uma racionalidade humana cartesiana – i.e. que, uma vez descobertas as suas regras de funcionamento lógico, pode saber tudo quanto há a saber –, a radicalidade do argumento neoliberal assenta justamente num pessimismo cognitivista.
O conhecimento humano é limitado, descentralizado e de progresso imprevisível. Quer dizer que i) não só aquilo que podemos conhecer está intimamente ligado à nossa inserção específica na rede de relações familiares, comunitárias, socioculturais, etc. particular em que vivemos, como também que, por causa disso, ii) inclui uma forte dimensão tácita, não codificável proposicionalmente, e iii) uma natureza dinâmica, não estática, de construção na interacção, sendo impossível determinar a direcção do seu progresso. Quer dizer também que não existe o universal nem o necessário (muito menos um sujeito transcendental kantiano) nem, como tal, qualquer coisa como o método da escolha racional.
Outra conclusão é a de que não é possível a centralização do conhecimento completo de todas as preferências e de todas as necessidades humanas numa agência, num organismo central incumbido da tarefa de parametrizar as relações sociais com base num tal conhecimento. Nem possível nem legítimo.
E este é o grande argumento neoliberal de defesa do mercado desregulamentado como dispositivo de coordenação social: mecanismos de regulação e de redistribuição (como é o caso da tributação) enviesariam o livre progresso das forças criativas humanas em interacção, em nome da imposição (ilegítima) de um ideal normativo qualquer por parte de uma agência central (um Estado) que não teria como deter o conhecimento completo das preferências e necessidades dos indivíduos.
Desconstruir este discurso com recurso aos postulados neoclássicos – apontando as assimetrias de informação e imperfeição dos mercados que impedem a realização de um óptimo social – é ineficaz e desajustado.
O ponto central à crítica é este: uma sociedade não existe sem uma configuração qualquer dos campos de escolhas possíveis abertos aos agentes (individuais e colectivos); e a forma desse campo – daquilo que podem e não podem fazer, com os respectivos benefícios a que têm acesso e custos em que incorrem – tem sempre um conteúdo normativo, corresponde sempre a um discurso da ordem do como deve ser.
Então, sendo que uma sociedade é sempre parametrizada por uma configuração institucional qualquer, não existe, de facto, qualquer coisa como uma desregulamentação.
O que existe é, isso sim, uma regulamentação negativa, isto é, a protecção, assegurada por uma dada configuração institucional, à livre manobra de determinados agentes relativamente a outros, na obtenção de benefícios e isenção de custos.
Ptif e Taf são neste sentido os filhos pródigos do neoliberalismo e os arautos da sua mensagem de offshorização do mundo: por baixo da capa de profetas do desmantelamento institucional como uma inevitabilidade da globalização económica, esconde-se uma agenda de exploração oportunista, rentista, dos limites institucionais que sempre existirão.
e a alternativa é
ResponderEliminarTico e TEco brasileiro?
O capital move-se à velocidade da luz
os homens e as mercadorias dos 6 aos 900 km por hora
logo fazer uma nova sociedade num mar de contentamento não dá