3 de dezembro de 2010

A dor da gente não sai no jornal.



No muito do que se falou nesta última semana sobre Rio de Janeiro, dos directos da RTP à blogosfera, foi possível observar que na maioria desses relatos, crónicas e comentários preponderavam dois lados: os traficantes e a polícia – mas apenas um local: as favelas cariocas. Dessa análise binária e comezinha teceram-se as já velhinhas e batidas conclusões de analistas sociais preguiçosos, da teoria do Estado paralelo à exultação da alegria e paz no coração dos cariocas (e de muitos dos comentadores) provocadas por cada puxar do gatilho do BOP e do Exército. O cúmulo do grotesco pertenceu mesmo à RTP. Quem assistiu às suas reportagens realizadas directamente do sopé do Morro do Alemão não pode deixar de notar um excitado enviado especial, João Pacheco Miranda, que, com uma emoção tão sincera como bacoca, ia relatando o avanço da civilização contra a barbárie morro acima. Mas, bem vistas as coisas cabe dizer que, no caso do Rio de Janeiro, o buraco é mais em baixo.

Esta invasão de favelas no Rio de Janeiro, com o exército no comando das operações, não é acontecimento singular na história da cidade e a sua repetição traz-nos o entendimento simples que esta, apesar da sua dimensão desproporcionada, está bem longe de ser a definitiva. Esta mesma invasão também não é fruto de uma subtida conscientização do poder público, como muitos teceram, operada a partir de uma decisão política de impor a presença do Estado, na sua vertente social e autoritária, aonde um perigoso poder paralelo ascendeu nos últimos anos. Existe sim uma decisão por parte do PT e do seu mais íntimo aliado PMDB que se traduz numa ofensiva policial e militar de contenção. Contenção mais do que necessária, aos olhos de homens da gema de Sérgio Cabral, na geografia de recursos mais desigual da América Latina, onde a pressão urbana se torna insustentável perante uma procura imobiliária feroz e onde o governo prepara o espectáculo mediático e politicamente lucrativo da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.


“Mas e o poder paralelo que existe e oprime?” Indignam-se os comentadores de serviço. “O que tem a esquerda a oferecer para além de apontar, com seu discurso gasto, as opressões estruturais que explicam (ou desculpabilizam) o caminho do crime?”. Tem tudo. Esse poder existe e é muito mais subalterno do que paralelo. Mas, se as suas diferenças e ramificações históricas estendem-se muito para lá do que estes eméritos analistas gostariam de investigar, a questão mais pungente continua a passar por perceber até onde vai o comando do crime organizado. Porque designações sonantes como PCC ou Comando Vermelho perdem alguma força quando sabemos que falamos de adolescentes, crianças de 14, 15 e 16 anos cujo crime é intermediar a venda de droga e cuja a recompensa é morrerem, na sua esmagadora maioria, antes dos 25 anos, sentindo o sabor de terra e sangue na boca. A liderança do crime organizado brasileiro, a estrutura que dá suporte à sua actividade e permite a reprodução do sistema, não está nas favelas nem nos presídios. Está longe das vielas sem esgoto e dos barracos cheios de nada. Dorme confortavelmente em Copacabana, passeia nas ruas de riqueza obscena do Leblon (onde o metro quadrado ultrapassa os 5 mil euros). São cidadãos do mundo e representantes de duas corporações mundiais de respeito: da droga e das armas.


E aí vem a pergunta: “mas e os 99% de habitantes trabalhadores das favelas, não sofrem com esse poder?” Sem dúvida que sim, e se o sofrem é precisamente porque o Estado não está ausente ou suplantado por um outro “paralelo”, está bem presente. É o Estado que empurra as pessoas morro acima para morarem em condições execráveis e as faz descer para trabalhar muito e por muito pouco. E, sobretudo, é o Estado que divide e que delimita os espaços. Que concentra o conflito e tenta agora não o deixar alastrar às “zonas sãs”.


O que muitos não fizeram neste conflito foi olhar para o outro lado, deixando escapar a causa e a solução do problema. Basta observar como as televisões mostraram, em êxtase, o luxo, improvisado pois sempre passageiro, das casas dos traficantes na favela. Mais do que dizer que as banheiras de hidromassagem e as piscinas são fruto de uma actividade criminosa, interessa passar a ideia que é inconcebível encontrar esse luxo na favela, subvertendo a lógica que ele só tem e só pode ter lugar em Ipanema ou na Lagoa, quando muito em Botafogo. E é pela manutenção dessa desigualdade espacial, que mantem o fluxo diário do trabalho e que separa a riqueza descomunal da zona sul da miséria restante, que o Exército luta hoje nos morros do Rio.


Uma política de esquerda que enfrente os barões das armas, combata o tráfico com a descriminalização das drogas, e, acima de tudo, imponha uma luta pela justa distribuição da riqueza no quarto país mais desigual do mundo continua a ser a resposta necessária. Mas nesse caso o ponto de partida é o Leblon, não a Favela do Alemão. Entretanto, o vai e vem quotidiano de milhões de pessoas na dura realidade das zonas pobres do Rio continuará, muitos perdendo mais de três horas diárias em transporte e chegando ao final do mês com um vazio na carteira, mas como tão bem cantou Chico Buarque: "a dor da gente não sai no jornal".

6 comentários:

  1. E que tal a legalização das drogas?

    Toda a gente tem opinião sobre os culpados e os inocentes. Sempre que vejo alguém falar sobre as drogas são sempre o mais conhecedores da sociedade e do ser humano e das relações de poder. mas parecem sempre falhar a questão essencial. Porque criminalizamos um produto que as pessoas querem? Porque achamos moral combater os traficantes? No tempo da proibição no estados unidos, era moral quem prendia quem vendesse alcool? Porque as drogas são mais perigosas? Porque são mais aditivas? Há droga com mais viciados e com mais mortes directas e indirectas que o alcool?

    Para a guerra às drogas só ha uma solução: a legalização de drogas! Só assim se acaba com a morte de inocentes e a prisão de inocentes. Quem apoia a guerra as drogas apoia as mortes e as prisões de inocentes.

    ResponderEliminar
  2. Epá,é normal vir aqui defender o que é escrito mas desta vez vou ter de ripostar.

    "Porque designações sonantes como PCC ou Comando Vermelho perdem alguma força quando sabemos que falamos de adolescentes, crianças" (Claro que também as há,e que é uma barbárie como em muitos países Africanos,mas não caía nessa ladainha. Se quer saber como começou o Comando e para que serve, há um filme que romanceia a fundação mas que se tiver atento compreende:chama-se «400 contra 1»)? "Cujo crime é intermediar a venda de droga e cuja a recompensa é morrerem"(mas já ouviu falar dos ataques em S.Paulo,por exemplo?Percebeu que a invasão começou em resposta a uma onda de violência?)? "Está longe das vielas sem esgoto e dos barracos cheios de nada"(tem a noção que a maior parte daquelas casa é tudo menos isso?Isto não é a África do Sul ou a Índia)? "É o Estado que empurra as pessoas morro acima para morarem em condições execráveis e as faz descer para trabalhar" (sabe quantas pessoas moram em favelas e têm bons empregos?Quantos não morando lá,trabalham por aquelas bandas?Se for ao Alemão irá ficar pasmado com lojas de electrodomésticos e um senhor que repara computadores)?

    Que queira defender "uma política de esquerda que enfrente os barões das armas, combata o tráfico com a descriminalização das drogas, e, acima de tudo, imponha uma luta pela justa distribuição da riqueza no quarto país mais desigual do mundo",eu não só aceito como apoio,mas daí fazer uma apologia de que aquilo é só gente boa e marginalizada é completamente desenquadrado...Mas já alguma vez foi ao Rio? Sabe do que está a falar quando diz que o PCC e o Comando Vermelho não passam de crianças (tambem as há mas servem para o trabalho sujo, que eu saiba quem manda no Comando ainda é o Marcinho VP,o Fernandinho Beira-Mar,o Elias Maluco e outros que tais)?Compreende que com este discurso só o que faz é cair no erro crasso de tratar todos os cidadãos das favelas com o mesmo grau de locura como os fascistas que os tratam a todos como criminosos? Compreende que um acto muito elogiado nesta acção foi por a primeira vez haver um respeito por os restantes habitantes do Alemão e uma tentativa de evitar vitimas civis?

    O que lhe posso garantir é que todos os meus amigos no Alemão só tinham um sentimento:finalmente! Agora falta o resto,como quem diz,falta tudo...Irei começar um blog certamente para acompanhar o processo,mas talvez daqui a 6meses quando a poeira assentar.Depois deixo-lhe o link para o ir informando de como está a ser.

    ResponderEliminar
  3. Caro anónimo.

    Já esperava comentários desse tipo. A sociedade carioca transformou-se, com uma certa justificação,numa sociedade de medo.

    Selecionar as partes com as quais não concorda é um bom princípio mas não esqueça as restantes.

    A opressão existe e tem como vítimas não só os moradores das Favela como a maior parte da população do Rio de Janeiro. Bem sei que alguma parcela da população já atingiou níveis de classe média em várias favelas, mas ninguém vindo de fora que já tenha estado no Rio (inclúindo eu próprio) consegue fugir ao sentimento de estar numa das cidade mais desiguais do mundo. Não dirigir mal a nossa raiva passa por aceitar que mesmo a miséria pode conviver com lojas de eletrodomésticos e computadores, a resposta não é por aí.

    O crime organizado é um problema social que estravaza para lá das favelas. O que eu digo é que o exterminio do PCC e o Comando Vermelho não é a solução. Veja o caso do Fernandinho Beira-Mar, está preso e logo outros se seguiram (e todos esses não começaram depois de velhos como sabemos).As possibilidades de existência de um PCC e um Comando Vermelho é que estão, desde de sempre, fora das favelas.

    O que importa perceber no Rio é porque esta invasão e porque agora? A onda de violência, que não surge do nada, deve ter como resposta uma defesa do Estado, ok, mas não é bem isso que está a acontecer no Rio.

    Enveredar pelo caminho de elogiar a invasão do Exército, repito, do Exército é abrir caminho para um Estado autoritário e em nada preucopado com as questões sociais (e o Brasil já tem uma boa experiência disso). O que se pacifica à bala não exige outros remédios.

    Por fim, e o PT nisto tudo. Até onde vai a profundidade do poço em que o PT se meteu. Esta acção acaba por ser uma boa imagem na despedida de Lula.

    Quando criar o Blog assine, é mais interessante discutir quando sabemos com quem.

    ResponderEliminar
  4. Caro Adriano,

    1)Se reler o que eu escrevi irá reparar que o que lhe tentei dizer foi que não são todos os favelados (que expressão horrível)que moram em condições degradantes em vielas sem esgoto e barracos cheio de nada.Isso é demagogia e lirismo.O que lhe tentei dizer com as lojas é bem simples:se no inicio as favelas eram zonas de discriminação,hoje são muito mais bairros pobres do que outra coisa.Se não sabe o porquê das casas não serem pintadas ou em muitas zonas estratégicas nem serem acabadas,basta pensar um pouco.Agora sobre a desigualdade da sociedade Carioca e Brasileira que ninguém duvide.

    2)Toda a gente sabe o porquê de ter começado agora:a copa do mundo está aí e é preciso retocar a maquilhagem da cidade.Mas o que interessa a muitos cidadãos,incluindo das favelas,é que seja feita alguma coisa.Ninguém no seu perfeito juízo defende que a invasão chega para acabar o problema,ou que sequer é realmente parte da solução.Mas era sem dúvida necessária.E eu digo isto sabendo que talvez alguns amigos tenham morrido,mas como eles diziam,eram soldados do Comando.E infelizmente soldados morrem.Não fico satisfeito com mortes seja de quem for,mas conhecia outra maneira realista de começar?Se conhece o Alemão ou o Cruzeiro sabe bem que não.Mas como disse e repito agora falta o resto,ou seja,agora falta o tudo (estado em todas as suas vertentes,principalmente as sociais).

    3)Por último a crítica ao PT...Sempre a crítica ao PT...O partido de esquerda que melhores resultados alcançou no últimos 20/30 anos.Mas não,ainda há quem ache que deveriam ter sido mais à esquerda,mais revolucionários,sem perceber que foi o equilíbrio que se conseguiu entre lucros privados/desenvolvimento estatal que permitiu a saída de tanta gente da pobreza,o auxilio de tantas famílias,o sucesso de tantas iniciativas.E neste caso a crítica é bem fácil,porque nem foi o PT que lançou a iniciativa,mas um aliado.Não foi nem o Lula nem a Dilma que deram o OK,mas alguém que numa malha complexa e normal de alianças se encontra aliado ao PT.Mas para atacar o Lula tudo é possível,até jurar que se viu o homem de arma na mão a subir por ali acima.

    Quanto ao blog,será exactamente para acompanhar,criticar e denunciar tudo aquilo que não for feito em termos de estado social.O tudo de que falo.Se o decido assinar ou não é basicamente problema meu,se não lhe agrada anónimos no seu blog tem bom remédio:restrinja!Eu nem gosto de falar como anónimo,mas depois dessa boca...Mas quer saber quem eu sou para quê?Penso que não nos conhecemos,e mesmo que sim,eu poderia querer passar despercebido.Esta mania Pidesca ou Stassiana de querer identificar toda a gente...

    ResponderEliminar
  5. Este blog é interessantíssimo, parabéns!
    Pelo post e pelo debate que se seguiu nos comentários, por tudo, valeu bem a pena tê-lo partilhado no facebook.
    Aqui há cérebros esclarecidos que debatem com profundidade e elevação.
    abraços

    ResponderEliminar