Um dos traços distintivos da actual crise com a crise de 29-32, é o das suas consequências politico-partidárias. Na verdade, os problemas sociais despoletados pela crise de 29 favoreceram, grosso modo, os partidos e as ideologias socialistas (sejam sociais democratas ou revolucionárias). É verdade que os exemplos da Itália ou da Alemanha ofuscam um pouco esta teoria. No entanto, se havia espectro que assolava todo o Mundo naquela época, era "o espectro do comunismo". O discurso anti-capitalista, da exploração do trabalho, da luta de classes, encontrava, então, ouvintes atentos e mobilizados. Enquanto Estaline depurava as virtudes da Revolução de Outubro, por toda a Europa, jaziam tentativas de Revoluções Socialistas.
Nesta nossa época a situação é bem diferente. Se há época em que são visíveis as contradições "entre o desenvolvimento das forças produtivas materiais da sociedade e as relações de produção existentes" é este nosso tempo. Todavia, são as forças político-partidárias situadas nos antípodas deste discurso, leia-se a direita, a colher os frutos políticos desta catástrofe social. À corrente inabalável do liberalismo americano, alia-se uma União Europeia sem rumo estratégico, mas ideologicamente colonizada pelos EUA. Depois há a China, com o pior do comunismo e do capitalismo, e todas as restantes potências económicas emergentes, reféns daquelas opções políticas estrangeiras.
Não se trata apenas de uma alteração de forças nos espectro político.Há ,sobretudo, uma alteração estratégica no discurso da direita. O discurso liberal mostra-se hoje mais atractivo, porque se aproveita de "chavões", de "ideias-força", que nasceram com a esquerda, em resultado da sua aprendizagem e do seu posicionamento no seio das lutas sociais. Quem, inocentemente ouvir Paulo Portas chocado com os prémios dos gestores, Bagão Felix considerando que "o Governo foi longe demais nas privatizações", ficará, de certo, confuso quanto ao seu posicionamento ideológico. Dirá a direita, em tom oportunisticamente ideológico, que existem questões transversais, como a dos prémios exacerbados dos gestores... Pois, mas é precisamente ao Estado, quando devidamente entendido, que cabe corrigir (dirimir em vocabulário social-democrata) essas discrepâncias, e a visão do CDS sobre a economia não se compadece, de todo, com essa visão de Estado.
Não é inocente o facto de a direita ter escolhido o dia 25 de Abril para tornar pública a sua estratégia. Nesse dia, Aguiar-Branco (o senhor do hífen), tentou colocar esquerda e direita no mesmo patamar, no que diz respeito à luta pela Revolução de Abril. Falou ele, em "preconceitos ideológicos", em apropriação de símbolos da Revolução. A verdade é que o discurso anti-ideologias é, ele próprio, ideológico e preconceituoso. É o discurso tecnocrata, da subjugação da política à economia, das inevitabilidades, sejam elas nas diferenças sociais, culturais, etc.
Se a esquerda saiu prestigiada com o 25 de Abril é porque ninguém esquece onde estavam Sá Carneiro, Freitas do Amaral, entre outros, quando activistas de esquerda, sucumbiam presos em Peniche. Se durante anos apenas a esquerda parlamentar colocou o cravo na lapela é porque, ao contrário da direita, nunca se envergonhou dessa grande transformação popular, nem dos seus símbolos.
Politicamente essa alteração estratégica de discurso da direita, consubstanciar-se-á na tentativa de destruição completa e definitiva do texto da Constituição portuguesa. Despida que foi, ao longo das múltiplas revisões constitucionais, de quase todo o seu progressismo, prepara a nova liderança do PSD (com o CDS ao colo,obviamente), um ataque (final, esperam eles) a essa réstia de esperança ideológica. O discurso tecnocrata será mais perceptível que nunca.
É bom, contudo, lembrar o seguinte: a Constituição não é um documento neutro. Não é um mero documento destinado a regular a organização do poder político e os direitos políticos individuais. Mesmo os códigos civis, penais, etc, não são neutros ideologicamente. Muito menos o será uma Constituição. Antes de tudo o resto, uma Constituição é um projecto político. Para que a seriedade predomine neste debate, será, por isso, necessário que os proponentes desta revisão constitucional assumam esta posição de princípio.
Pessoalmente, não duvido que será deste debate que sairão as novas arrumações no espectro político-partidário português. Será este, em meu entender, o grande debate das eleições presidenciais. E desse debate hão-de sair confirmações políticas relevantes. Há-de sair uma nova composição da esquerda e, em consequência, uma nova estratégia de governação popular.
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