Que os EUA tenham estado em Lisboa bem mais empenhados na Cimeira da NATO do que na semana passada estiveram em Seul na reunião do G20 não é só (mais) uma manifestação de saúde do status quo da hegemonia ideológica; é um dejà vu inquietante.
Firmar uma “NATO 3.0”, apostada em “investir em defesa antimíssil, em ciberdefesa e na cobertura no mundo inteiro” – como declarou Anders Fogh Rasmussen, Secretário-geral da Aliança Atlântica – e assegurar o alinhamento da Rússia com o seu conceito estratégico foram os objectivos principais de uma agenda que enviesou a opinião pública, desviando-a de considerações históricas que, mais do que nunca, importa manter presentes. Este enviesamento corresponde à perigosa transferência de atenção da urgência em reformular a ordem económica internacional para o reforço das alianças militares.
A História já antes mostrou o encadeamento causal que leva das disputas cambiais (enquanto resposta à depressão económica) e, por arrasto, comerciais, às tensões políticas.
George Friedman e Peter Zeihan fazem aqui uma boa síntese do processo desta natureza que, da Grande Depressão à Segunda Guerra Mundial, semeou as fundações para a Guerra Fria.
A partir dos anos 30, o recuo das economias desencadeou tensões comerciais, à medida que vários governos adoptaram estratégias proteccionistas, em particular taxas sobre as importações. Para os Estados Unidos, os problemas na procura efectiva na base da Grande Depressão só foram definitivamente resolvidos com os efeitos do esforço militar associado à Segunda Guerra Mundial sobre a produção e o emprego.
Duas grandes questões dominavam o debate internacional. Do ponto de vista económico, interessava reconfigurar a ordem económica por forma a que recessões económicas futuras pudessem ser combatidas por outros mecanismos dinamizadores do emprego e da procura que não degenerassem numa nova guerra; do ponto de vista político e geoestratégico, o pós-guerra colocava a questão da contenção do bloco soviético anticapitalista.
Na impossibilidade de uma efectiva presença na Europa Ocidental, o contrapeso à constituição dos países da Europa de Leste em satélites soviéticos concretizou-se não só por via da dependência face ao financiamento norte-americano para cobrir os vários rombos deixados pela guerra (materiais, orçamentais…), mas também por via dos arranjos institucionais com que os acordos de Bretton Woods vieram re-parametrizar o novo sistema económico.
Bretton Woods foi a oportunidade histórica para os EUA se servirem da vantagem obtida com o impulso económico induzido pelo esforço militar de uma guerra travada noutro local para se colocarem no centro desse novo sistema: o acesso praticamente isento de tarifas dos países europeus aos mercados norte-americanos abria caminho a uma contrapartida de deferência nas questões militares que cinco anos depois fundaria a NATO.
Como escrevem Friedman e Zeihan:
“A verdade é que Bretton Woods foi menos um agregado entre iguais do que um enquadramento para relações económicas no seio de uma aliança desigual contra a União Soviética. O fundamento de Bretton Woods foi o poder económico americano – e o interesse americano em fortalecer as economias do resto do mundo de forma a torná-las imunes ao comunismo e a conter a União Soviética.”
Mas o espírito keynesiano original de Bretton Woods, de prevenção de assimetrias macroeconómicas destabilizantes e de ajustamentos deflacionários, requeria um elemento institucional fundamental que nunca foi concretizado: a substituição do dólar enquanto moeda de referência para as transacções internacionais, de modo a criar um enquadramento de Câmara de Compensação Internacional que prevenisse e corrigisse desequilíbrios das balanças de pagamentos dos países, e a libertar as instâncias nacionais de decisão de política económica relativamente a ajustamentos deflacionários.
O Bancor por cumprir mostrou bem que Bretton Woods não foi tanto o projecto de economia política corrector de assimetrias e emancipador da governação democrática das prioridades macroeconómicas dos vários países que a sua concepção teórica prometia, e mais os EUA a concederem acesso à sua capacidade económica em troca de alinhamento militar na contenção do bloco soviético.
Hoje é a China que os Estados Unidos querem conter e este mês tivemos dois sinais que fazem lembrar a mesma estratégia que esteve na origem da Guerra Fria.
A importância da última reunião do G20, pela agenda dedicada às actuais tensões cambiais, tem sido bastante analisada (por exemplo, aqui, aqui, e aqui ). Consensuais parecem ser as ideias de que i) a ordem monetária internacional actual produz assimetrias insustentáveis entre as balanças de pagamentos dos países, ii) que essas assimetrias são de uma natureza tal que correspondem a fluxos de poupança das economias emergentes para bolhas especulativas associadas ao crédito nos países ricos, e que iii) as instituições de governação da ordem económica internacional deveriam ser reconfiguradas por forma a incluir mecanismos que previnam/ corrijam esses desequilíbrios ao mesmo tempo que reservem autonomia às instâncias de governação económica nacionais para prossecução de objectivos de crescimento e pleno emprego.
Mas em Seul houve pouca ou nenhuma vontade política para dar reais respostas a estas questões, sendo evidente que nem os EUA estão dispostos a abdicar da hegemonia política do dólar enquanto moeda de reserva internacional, nem a China está disposta a abdicar da hegemonia económica decorrente da sua balança excedentária.
No seguimento disto, a cimeira da NATO que hoje terminou, com ênfase particular no firmar da aproximação da Rússia, não deixa de soar a uma declaração de supremacia militar do dólar que pode inaugurar um processo que já vimos acontecer antes.
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