28 de setembro de 2010

da democracia, na armadilha institucional europeia

Em vésperas da Jornada Europeia de Luta, interessa considerar que esta será uma experiência de protesto distinta em essência de outras manifestações nacionais, na medida em que se caracterizará, simultaneamente, i) pela insuperável desvantagem de não traduzir custos políticos (eleitorais) para os (reais) destinatários da mensagem, e ii) pela força e importância vitais de, ao ser, em última análise, um protesto contra isso mesmo, ser um acto de reivindicação radical de democracia.

Mais do que reprovação das medidas de austeridade que estão a ser implementadas pelos vários governos em toda a Europa, o carácter transnacional desta convocatória sugere que esta é uma mensagem que se destina justamente àquilo que exige essa implementação de medidas de austeridade em toda a Europa: a configuração institucional da União Europeia.

Ora, de todos os traços que a caracterizam, aqui interessa-nos particularmente o facto de ela traduzir um princípio que autores como Jacques Sapir designam por constitucionalismo económico[1]. Significa que o conjunto de normas que configuram o espaço económico da eurozona está, no essencial, radicado em planos de deliberação fora do controlo democrático da população. Sendo o Banco Central Europeu o exemplo disto que logo nos vem à cabeça, importa não esquecer como outras instituições influentes na parametrização das relações económicas na União – como as entidades de regulação da concorrência, por exemplo – são formalmente independentes do controlo político e, nesse sentido, da soberania popular.

O constitucionalismo económico (e seu corolário de independência formal das instituições económicas relativamente ao controlo político) é o princípio teórico-legal mais perigosamente anti-democrático que existe.

Desde logo sob o ponto de vista estritamente formal, em que corresponde a uma alienação da soberania popular e, nesse sentido, a uma quebra da relação de representação que funda o contrato social e torna o poder legítimo. As leis são legítimas enquanto que são expressão da vontade popular, enquanto a re-presentam, e uma instituição que a não representa, isto é, que não é constituída via mecanismos de presentificação da vontade popular é incontornavelmente anti-democrática e ilegítima.

Depois, porque essa alienação de soberania popular corresponde a um sentido ideológico que, justamente enquanto tal, não pode ser atirado para fora do escrutínio social.

O constitucionalismo económico é, por excelência, o projecto político do neoliberalismo. A autonomização do mercado face à intervenção de elementos não mercantis (políticos e sociais), traduzida entre outras coisas na erosão da provisão pública, e a santificação do capital, consubstanciada no postulado obsessivamente omni-presente do combate à inflação, têm consequências sociais que o projecto neoliberal não pode admitir ver traduzidas em custos políticos. Além do paternalismo tecnocrata do costume, a expulsão do controlo democrático é mesmo uma exigência incontornável do funcionamento do mercado (pelo menos do seu funcionamento segundo a utopia mecanicista neoclássica).

A Jornada Europeia de Luta de amanhã tem o interesse de corresponder à radicalização desta consciência: que, se as recessivas medidas de austeridade, mais do que decisões específicas e isoladas de uns quantos maus governos, são imposição de uma configuração institucional absolutista que aliena a soberania popular dos espaços de decisão das políticas económicas, então a luta de fundo a ser travada é pela reversibilidade genérica desse absolutismo no quadro institucional europeu.

Uma radicalização assim da exigência de democracia seria um importante passo na formação de consciência anticapitalista.



[1] Os Economistas contra a Democracia

1 comentário:

  1. Confirma-se. Foste uma óptima aquisição para o plantel adeusleninista. Bom argumento de teoria política ou, talvez, de crítica da economia política.

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