15 de setembro de 2010

Cuba: modelo inFidel?



A polémica sobre as declarações de Fidel Castro a cerca da validade do modelo cubano marcou a agenda mediática. Entretanto chegaram factos novos, como o Fabian bem referiu.

O caso cubano foi aquele em que mais me detive na conferência Há Socialismo sem democracia?, cuja polémica conhecemos. Aqui ficam umas notas para uma interrogação aberta e com referência marxista sobre o modelo cubano (originalmente publicadas aqui):


A minha posição sobre aquele tipo de modelo político já é conhecida [i]. Mas há ainda muitas e muitos socialistas, especialmente na América Latina mas também na Europa, que vêem em Cuba, não digo um modelo mas pelo menos um caso de sucesso ao nível da democracia económica. Há ainda quem sofregamente deposite em Cuba toda a caução de uma vida de luta e esperança. É preciso chamar a razão para tentar olhar Cuba com olhos de marxista.

Comecemos, antes de mais, pelo aspecto da democracia política e tomemos o caso dos presos políticos. Além do delito de opinião, ou seja, de ser proibida a expressão de opiniões consideradas contrárias à Revolução; além disso, é sintomático que o Estado cubano nem se respeite a si próprio. E digo isto porquê? Ora, sete anos depois da condenação do “grupo dos 75” a 20 anos de prisão, o Partido-estado revê a questão não revogando as leis que os condenaram, nem amnistiando por via da Assembleia Nacional Popular, mas negociando com a Igreja Católica e o Reino de Espanha. Ou seja, o regime reduz a zero aquilo que deveria garantir: um Estado de direito socialista.

Mais ainda, sempre que quer simular abertura e diálogo, o actor escolhido é a Igreja e nunca os sectores da esquerda cubana que, sendo críticos do actual estado de coisas em Cuba, propõe alterações à estrutura económica e política (para, nas palavras dos próprios, 'salvar a Revolução'). Falo nomeadamente dos apoiantes do documento “Cuba necesita un socialismo participativo y democrático. Propuestas programáticas”.

De acordo com Campos, Cobas e os demais defensores das Propostas Programáticas: os discursos de Fidel de 17 de Dezembro de 2005 e especialmente o de Raúl Castro de 26 de Julho de 2007 “estimularam outro debate onde, de novo, as bases se pronunciaram por um socialismo mais participativo e democrático”. Mas nem até 2008, quando foram escritas as referidas propostas, nem desde então foram divulgados e discutidos os resultados dessas discussões na sociedade cubana.

As próprias Propostas Programáticas, um documento que se pretende um contributo para o debate da salvação da revolução, só são referidas na imprensa oficial para ser deturpadas e acusadas baixamente de propostas neoliberais e anti-revolucionárias.

Por exemplo, Campos e Cobas propõem a desestatização de alguns sectores da economia e a sua socialização pela livre associação de trabalhadores. Propõe a criação de modelos de propriedade/gestão Cooperativa [ii], Autogestionada [iii] e Cogestionada entre o Estado e os trabalhadores [iv] - uma forma de libertarem as forças produtivas do poder da burocracia estatal. Ou seja, o Estado – em verdade, o grupo que controla o partido que controla o Estado – nega-se a discutir um elemento fundamental e decisório: a propriedade. Estranho para qualquer marxista!

Estas propostas são perfeitamente discutíveis, mas a questão arrasta outra: Que democracia económica será esta onde o Estado se transforma em patrão e não discute abertamente as políticas económicas com os cidadãos, transformando-os em meros assalariados?

A resistência ao bloqueio económico dos Estados Unidos é heróica, mas o bloqueio só é desculpa desde a queda da União Soviética (antes o discurso era o de que o bloqueio era ineficaz, pois bastava a fraterna assistência soviética). Talvez uma verdadeira democracia económica tivesse apostado mais na produção que na dependência. Mas, seja como for, o bloqueio não pode ser o bode-expiatório de tudo.

Os serviços públicos, nomeadamente o serviço de saúde universal e de qualidade são uma conquista assinalável. Mas o socialismo não pode ser o somatório de serviços públicos com uma ditadura burocrática, onde é estimulada a cultura da delação pelos comités de defesa da revolução.

O Congresso do PCC continua adiado para as calendas gregas e, embora seja negado pelos dirigentes cubanos, o Estado cubano está a seguir uma via semelhante à chinesa ou vietnamita [v]. Sintoma disso é, por exemplo, uma das medidas “revolucionárias” do Governo de Raúl Castro ( medida que está suspensa mas prometida): trata-se do fim do acesso a bens básicos a preços sociais [vi], com o objectivo de fazer frente à redução de receitas do Estado. Onde é que nós já ouvimos isto?!


Dizem que Fidel Castro disse que o modelo cubano já não funcionava sequer em Cuba. Agora Fidel desdiz o que dizem que ele disse. Teria antes dito que o modelo capitalista já não funciona nem nos EUA. O "diz que disse" é muito e vale a pena ir além disso (...). Há muitas perguntas para fazer.

Parte delas vão sendo respondias por PECados (pouco) originais como o despedimento dos 500 mil trabalhadores cubanos em nome do estímulo ao empreendedorismo.

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[i] “A História prova que o monopartidarismo, em vez de garante de uma unidade para o progresso revolucionário, foi a própria origem da contra-revolução. O domínio do aparelho de Estado pelo partido único gerou, a partir dos seus quadros, uma nova classe dominante, com interesses próprios e necessariamente diferentes dos da maioria proletária.” Ver mais em Joana Mortágua e Bruno Góis, “Que fazer (com Lenine)?”, A Comuna, nr 21, http://www.acomuna.net/media/acomuna21.pdf, janeiro de 2010, pp. 4-7
[ii] “que incluiria além de pequenos camponeses unidos voluntariamente, pequenas empresas industriais ou de serviços (construção, gastronomia, oficinas de reparações) mais de tipo artesanais, onde os meios de produção são de propriedade original dos trabalhadores”
[iii] “para empresas medias a pequenas que por seu nível de desenvolvimento (pequenas fábricas, oficinas, restaurantes, instalações hoteleiras menores) onde a propriedade sobre os meios de produção se outorgaria directamente aos trabalhadores em forma plena, por meio de venda, a dinheiro ou a crédito, ou a cedência por parte do Estado. Os trabalhadores determinariam autogestionariamente tudo na empresa, através de seus órgãos democraticamente eleitos ”
[iv] “(entre o Estado e os trabalhadores) para as empresas de interesse nacional ou estratégico, com alto nível tecnológico, que demanda uma enorme quantidade de recursos e pessoal altamente especializado que só pode ser conseguido pelo participação Estatal ou capital estrangeiro”.
[v] Breno Altman, O rumo das Reformas de Raúl Castro? In Carta Maior, http://www.cartamaior.com.br/, 02/08/2010

[vi] Estes produtos cobrem aproximadamente 30 % das necessidades alimentares de cada cubano e cada cubana.

2 comentários:

  1. Bom texto.
    Creio que a recente evolução política do regime cubano comprova aquilo que já penso há muito: que os mais puristas, aqueles que nos apontam o dedo e nos chamam revisionistas e social-democratas, são os primeiros a deixar os seus princípios socialistas de lado.
    Mas isto também me põe a pensar sobre o que se passa na Venezuela, onde estão a ser implementados os princípios que estes dissidentes políticos cubanos defendem (e bem). De facto, construir o socialismo pela via democrática é complicado e demora tempo. Mas acho que esse é um preço que temos de pagar. Caso contrário, deitamos fora o socialismo juntamente com a democracia.

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  2. kandimba: estar na mó de baixo é sempre mais fácil. O problema principal de Cuba é económico. Não seria com mais democracia que iria arranjar mais recursos para desenvolver o país. Por isso, "nós" termos razão porque somos críticos contra "eles" que defendem um sistema autoritário e caduco, etc. é falhar o ponto essencial da questão.

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