23 de junho de 2010

Direito está a reagir!

Há muito o hábito do estudante de Coimbra de se vangloriar dizendo que “em Coimbra é que é, em Coimbra é que há contestação, inconformismo, intervenção.” Quem, como eu, por cá ande há algum tempo percebe que, do que se trata realmente, é de um mito. E dessa mistificação continua ainda a cidade a colher frutos, recebendo, todos os anos, estudantes de todos os pontos do país, quiçá iludidos (outras vez, como eu) com os ensinamentos da “Geração de 70 do séc. XIX”.

Isto a propósito do súbito e inesperado despertar (convém na abusar com a terminologia!) de alguns núcleos/associações de estudantes historicamente ligados ao establishment associativo, de que é paradigma, o curso de Direito.

Com o bafo pressionante dos “advogados já estabelecidos”, a Ordem dos Advogados decidiu este ano, como forma conjuntural de diminuir os seus efectivos, impor um exame de admissão como pré-requisito de acesso à profissão de advogado. Assim, para além da licenciatura em Direito, os candidatos teriam ainda de lograr a aprovação naquele exame para almejarem, enfim, o exercício daquela profissão. “O exame parece todo construído não para avaliar as competências dos estudantes, mas para barrar a entrada na profissão” defendem os representantes dos estudantes. Por outro lado, consideram aquele exame ilegal, uma vez que “o artigo 187º do Estatuto da OA dispõe clara e inequivocamente que todos os licenciados podem aceder à Ordem”. Por fim, tendo chumbado 90% dos candidatos, os estudantes queixam-se “da inexistência de critérios de correcção…” (onde é que eu já vi isto?!).

Em bom português, com o exame (pré-requisito) de admissão à Ordem dos Advogados chegou-lhes a pimenta ao nariz e decidiram levantar os rabos dos gabinetes e tentar reagir (palavra escolhida a dedo!).

O Bastonário, um misto de labirinto e barco à deriva, retorque que este exame para além do efeito de racionalização do acesso à Ordem, coloca a nu as fragilidades do ensino de Bolonha que considera uma “fraude” e classifica os finalistas de "bacharéis baptizados de licenciados". Culpabiliza igualmente o sub-financiamento estatal do Ensino Superior e a sua consequente degradação. Por sua vez, Menezes Leitão refere que “é evidente que quatro anos de licenciatura não chegam, com ou sem exame”.

É evidente que o Bastonário instrumentaliza em seu favor as críticas ao Processo de Bolonha e ao sub-financiamento estatal. A sua grande preocupação é a de “reduzir o número de licenciados que chegam ao mercado de trabalho todos os anos”. Mas as suas objecções oportunistas, não deixam de ter muita da verdade desta história.

Quem tenha conhecido o modelo pré-Bolonha admitirá, sem delongas, a sua superioridade do ponto de vista científico. Quem tenha acompanhado (e sido vítima) da transição para o Processo de Bolonha, em especial no curso de Direito, se opção tivesse, escolheria, decerto, o modelo antigo.
Na verdade, por todo o país as faculdades de Direito foram as que mais dificuldades encontraram para se adaptar à “catástrofe Bolonha”. A avaliação contínua para todos foi sempre uma miragem, dado o número massivo de estudantes e a falta de condições logísticas. Depois, os estudantes não só viram as suas oportunidades de obter avaliação positiva nas múltiplas cadeiras reduzidas (fim da época de Setembro), como foram obrigados, sem avaliação contínua a realizar exames de quatro em quatro dias. A qualidade pedagógica, essa utopia imemorial, manteve-se igual a si própria… E mais não digo. Com o aumento das dificuldades em obter aproveitamento escolar, os bolseiros viram a sua vida pauperizar-se como nunca.

E onde estava esta “elitezinha” de representantes associativos de Direito?!

Mas a saga de Bolonha vai muito para além da degradação do ensino nas faculdades de Direito. Não só viram a qualidade do ensino piorar, como tiveram os estudantes de pagar mais por um serviço que se deteriorou. A divisão por ciclos de estudo, e as sub-divisões entre ciclos (mestrados de elite e mestrados dos “descamizados”), há muito faziam crer que todos os anos sairíam estudantes formados em Direito, de nível inferior aos seu antecessores.

Eu sou daqueles que não esquecem. Ao mesmo tempo que lia, há já dois anos, uma notícia sobre a ocupação de faculdades em Barcelona em protesto contra a implementação do Processo de Bolonha, a Associação Académica de Coimbra, encabeçada por variadíssimos estudantes de Direito, marcava para o mesmo dia uma guerra… de almofadas na Praça da República! Lembro-me também do então candidato à AAC, Jorge Serrote, ter dito ao Jornal Universitário A Cabra que “ não valia a pena discutir a implementação ou não do Processo de Bolonha porque este já era uma realidade.” É caso para cantar com Tony Carreira: “Ai destino, ai destino!”. É precisamente a sua geração, a primeira a arcar com as consequências nefastas do Processo de Bolonha (a falta de qualidade, etc) e os resquícios de aproblamiticidade com que, academias como a que ele liderou, granjearam a implementação de Bolonha!

Pois é, caros “colegas” do meu curso… Da próxima vez façam um esforço para ver mais do que os vossos olhos vos mostram! Levantem-se contra a injustiça e não só contra as injustiças de que são vítimas. Têm (temos) toda a razão contra a Ordem dos Advogados, mas o que merecemos mesmo é que quem está de fora ignore as nossas justas reivindicações, tal como fizemos, de uma maneira geral, com eles. É só para ver se aprendemos alguma coisa.
Perdoem-me se fui incendiário, sim?

2 comentários:

  1. A questão que tu levantes é bastante pertinente. O debate sobre como se estabelece resistência e oposição a uma ameaça externa, se é a consciência em si para si ou se é uma coligação de individuos que cerram fileiras contra a perca de direitos e garantias individuais.

    Acção colectiva ou união de interesses individuais?

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  2. Gostei, Hugo. Recordo que quando eu e a Joana Mortágua alertávamos as colegas e os colegas para estas questões (bolonha vem aí!!)ninguém ouvia. Lembro-me que muito tempo depois, quando bolonha lhes caiu em cima, conseguimos ter salas cheias de pessoas e pessoas cheias de tempo em 3 eventos realizados em poucas semanas: 1 sessão de esclarecimento e 2 assembleias gerais dos estudantes de curso para participação no processo de adaptação da licenciatura (participação de estudantes que sendo obrigatória, só foi cumprida por força dos estudantes e das estudantes dinamizados pelo núcleo do curso). Valeu de muito? valeu alguma coisa. Mas valeria mais se tivessem acordado mais cedo.

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