22 de abril de 2010

Imigração, para além do mito do Mercado


A respeito da imbecilidade de Armindo Costa e Fernando Ruas aqui estampada e à falta de tempo recupero aqui um texto de 2009 sobre a questão da Imigração.

Já nos disse Barthes[1] que uma das características constantes de toda a mitologia burguesa é a incapacidade de imaginar o outro. Este outro, ou melhor, esta imagem do outro, no caso do Imigrante, e mais especificamente a do Imigrante indocumentado, ganha na Europa proporções preocupantes na eminência de uma crise social profunda e é precisamente no campo das representações colectivas que é necessário, hoje mais do que nunca, convencer e vencer.

Na origem do problema encontramos o Estado-Nação como um produto da ascensão e da solidificação do capitalismo nos séculos XVIII e XIX, ao mesmo tempo que representou a instância política por excelência da destruição progressiva das lógicas e poderes não capitalistas[2]. Essa lógica de nascimento e consolidação de uma instância política fortemente burocratizada, capaz de controlar e legitimar as relações económicas emergentes, edificou-se por um lado na robustez centralizada do exercício e legitimidade do poder, ou seja, no surgimento da nova figura do Estado moderno e dos seus instrumentos repressivos, e por outro, no forte sentimento de pertença e identidade cultural nacional, um fenómeno coetâneo à solidificação do Estado-Nação. É certo que um dos mais consensuais direitos de soberania de um Estado-Nação é o de controlar quem pode entrar e permanecer no seu território, mas podemos inverter a proposição, ou seja, questionar os mecanismos e critérios de entrada no território é uma forma de abalar a estrutura de poder sobre a qual repousa a soberania de um Estado-Nação. Desmascarar os mecanismos ideológicos de legitimação da soberania estatal, mais do que um combate de pendor socialista significa hoje uma urgência na emancipação de milhões de imigrantes em todo o mundo.

Dos campos políticos europeus que passaram e permanecem na governação podemos dizer que assumem , desanuviadamente, a sua visão utilitarista em relação à imigração, da social-democracia (em agonia ideológica) à direita conservadora, passando pelos neoliberais, a diferença fica-se pela têmpera discursiva. Esse utilitarismo está estampado nos discursos oficiais e legislação dos diferentes estados assim como nos vários acordos europeus. Está no espaço Schengen e no tratado de Amesterdão assim como está, de forma sombria, na directiva de retorno[3]. Está na interpretação dos fluxos de imigração como repositórios ou excedentes da esfera económica, assim como na estratégia européia que tenta limitar a imigração ilegal a partir de instrumentos legais e policiais comunitários[4] e no intensificar do aliciamento financeiro aos países de origem de forma a serem estes a estabelecer o primeiro tampão às correntes migratórias. É, podemos dizer, uma visão de proprietário, mas de um proprietário que lida com um comércio rebelde, insubmisso, que teima em desobedecer as leis de ouro do mercado e que é preciso disciplinar.

No caso português a melhor maneira de percebermos o utilitarismo do Estado é avançarmos com uma questão simples: o que é necessário a um estrangeiro para viver legalmente em Portugal, com os direitos e deveres que a lei lhe consagra? A resposta governamental é crua: é preciso que trabalhe (os que possuem rendimento próprio são outra história, o que exemplifica o critério classista destas políticas). Esta resposta é a base do mito do mercado na imigração. Os relatórios de necessidade de mão-de-obra, as autorizações de permanência e a exigência de um contracto de trabalho para as regularizações extraordinárias são exemplos claros, os imigrantes trabalham, não como um meio para a sua própria criação e emancipação mas como um fim utilitário que varia consoante as necessidades de quem os recebe. O trabalho, neste caso, mais que uma função ou uma utilidade é antes uma acepção, ele abarca um sentido de totalidade para lá da qual o imigrante não existe, simplesmente não interessa e mais, pesa. E, claro, lá está o mercado que regula as necessidades e os excessos, num presente imutável e privado de história.


É essa a mensagem que Vieira da Silva transmite quando anuncia a redução das quotas de trabalho para imigrantes
[5] mas, neste caso, com um duplo engodo. O primeiro reside na recusa em aceitar o papel estrutural[6] ocupado pelos imigrantes indocumentados na economia (Vieira da Silva sabe bem a quem interessa manter essa situação) defendendo assim a fiabilidade do sistema das quotas que toda a gente já reconhece como falido[7].O segundo, mais grotesco, é dizer que perante uma crise económica a culpa não está no mercado e, claro, em quem o sustentou politicamente durante décadas, não, a culpa está do lado de quem teima em contrariá-lo, e pior, daqueles que mais nada devem esperar do que existir como parte do mercado, nunca para além dele.

É aqui que retornamos a Barthes. Pois sendo, segundo ele, o mito uma fala despolitizada e em divórcio com o conhecimento será a fala que permanece política aquela se lhe deve opor. É por isso que para enfrentar o mito do mercado no caso da imigração é necessário, claro, desmascarar a correlação xenófoba e desonesta entre imigração, desemprego e criminalidade[8], mas ir mais além, é preciso uma proposta que rompa com o fim próprio deste mito, o de “manter imobilizado o mundo”. Tal implica uma concepção para além do mercado, implica reconhecer o imigrante na sua multitude, nas suas insuficiências e generosidades, e mais, implica reconhecer a sua capacidade emancipadora face ao próprio mercado. Essa emancipação não se conseguirá com uma conciliação (principalmente a dos discursos paternalistas e bacocos), ela terá de ser uma oposição, uma oposição que una, em toda a sua heterogeneidade, aqueles que são usurpados pelo elemento comum, ou seja, os donos do mercado. É esta oposição que pode desmistificar os modelos falidos, (Multicultural, Comunitário, Republicano)[9], eles próprios frutos de uma oposição nacionalista e patriótica e desempenhar um papel decisivo nas representações colectivas avançando na contra-corrente da xenofobia e da exploração.

E daqui o realço à fibra e legitimidade dos imigrantes e dos que a eles se juntam para exigir o direito à residência, contra a exploração laboral e exclusão social mas também para exigir o direito ao voto como instrumento de emancipação face a uma política discriminatória, delatória e mentirosa. É uma luta premente porque trata de uma infelicidade e só a consciência da infelicidade pode alavancar a necessidade da mudança.

[1] Roland Barthes, (1980), Mitologias, São Paulo: Difusão.

[2] Manuel C. Silva, (2006), “Entre o infra-estatal e o supra-estatal: o Estado-Nação e democracia em perda” in Manuel C. Silva (org). Nação e Estado, entre o Global e o Local, Porto: Afrontamento.

[3] Com 197 votos contra e 369 votos a favor, sendo um destes últimos o do eurodeputado socialista português, Sérgio Sousa Pinto, foi aprovada a directiva de retorno, a 18 de Junho de 2008. Por muitos quadrantes sociais e políticos apelidada de “directiva da vergonha”, esta medida constitui o mais claro ataque e movimento repressivo para com os cidadãos imigrantes. Entre as medidas dispostas pela directiva prevê-se a detenção (detenção administrativa, sem ordem judicial), com posterior processo de expulsão, de imigrantes que entrem e residam sem papéis em território comunitário, podendo essa detenção estender-se a um máximo de 18 meses (Em Portugal é entre dez e vinte dias, segundo o artigo 138° da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.) incluído casos de menores não acompanhados. O diploma prevê ainda a devolução de imigrantes aos países de trânsito (onde a práctica é criminalizada) e não aos seus países de origem e ainda a possibilidade de proibir a entrada no território da União Europeia por um período que pode chegar a 5 anos. O quadro da directiva não estaria completo sem antes citarmos a mais hipócrita das suas directrizes (21º): “Os Estados-Membros devem executar as disposições da presente directiva sem qualquer discriminação em razão do sexo, raça, cor, etnia ou origem social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual”.


[4] “Este mecanismo [o Frontex] misto, composto por forças policiais e militares, tem servido de pretexto para a NATO alargar a sua presença estratégica no continente africano, descendo cada vez mais a sul do Atlântico. Prova disso foram as recentes manobras da NATO em Cabo Verde. Aliás, desde os dramáticos acontecimentos de Ceuta e Melilla, deu-se um passo importante para transformar a Frontex no principal instrumento de repressão contra os imigrantes.” Mamadou Ba, 2006, “Imigração e ideologia da guerra”, in www.esquerda.net .

[5] JN, 15/05/09 – “ Redução de quotas para imigrantes reforça xenofobia e manifesta incompetência do governo.”


[6] Vagas indicativas de emprego imigrante para 2008:de 8.600 vagas indicativas de emprego imigrante em 2008 apenas corresponderam 3300 vistos de residência atribuídos.

[7] João Peixoto, (2008), “Imigração e mercado de trabalho em Portugal: Investigação e tendências recentes”, in Migrações, Abril, Observatório da Imigração.

[8] Dos estudos existentes a maioria aponta para uma similar taxa de criminalidade cometida pelos imigrantes em relação aos nacionais. Cf. Hugo Seabra; Tiago Santos, (2005), A criminalidade de Estrangeiros em Portugal, Observatório da imigração, Ed. Alto-Comissariado e minorias étnicas: Lisboa

[9] Para uma critica sociológica destes modelos: Veit Bader, (2008), Racismo, Etnicidade, Cidadania, reflexões sociológicas e filosóficas, Porto: Afrontamento.

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